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Após receber a misteriosa mensagem, Antônio se convenceu de que os homens dentro do carro no estacionamento não queriam nada com Gabriela, e sim com ele. Tratou de pensar numa forma de protegê-la antes mesmo da sua própria segurança.
— Pode me dar licença um minuto? Preciso ir ao banheiro.
Sem esperar a resposta, Antônio se levantou e atravessou o salão do pequeno quiosque, sob o olhar desconfiado de Gabriela, em direção a uma porta atrás do caixa. Parou logo que saiu do campo de visão de todos e tirou o celular do bolso.
— Alô, Victor? Preciso de um favor, mas não posso explicar tudo agora…
Victor foi professor substituto por dois anos na universidade em que Antônio trabalhava e os dois se tornaram próximos, mas não se falavam há algum tempo, desde que Victor declarou seus sentimentos pelo colega, e as coisas ficaram estranhas. Antônio não gostava da ideia daquele contato, mas não conseguia pensar em mais ninguém para pedir ajuda; sabia que estava falando com alguém que faria qualquer coisa que ele pedisse. Em outras circunstâncias se sentiria mal por isso, mas, naquele momento, sucessivas descargas de adrenalina já haviam posto seu instinto de sobrevivência acima de julgamentos morais.
Voltou para a mesa fingindo que ainda conversava ao telefone, simulou uma despedida e sentou-se diante do prato com a comida já fria.
— Vou precisar ajudar um amigo com um problema. Ele vai passar aqui pra nos pegar. Vou levá-lo ao aeroporto, porque a pessoa que viajaria com ele desistiu e ele precisa de alguém pra dirigir. Mas não se preocupe, deixaremos você em casa.
— Não precisa, eu me viro.
— Eu insisto. É domingo, está chovendo, é difícil sair aqui do campus sem carro, e você já teve um dia bem difícil.
Antônio se esforçava para exibir alguma naturalidade e não assustá-la. No lugar dela, desconfiaria daquela conversa de pegar carona com um terceiro, mas não conseguira pensar em nenhuma história melhor para usar como desculpa. Tentou se tranquilizar pensando que ela não estava no mesmo estado de alerta que ele, a menos que também tivesse percebido a presença dos homens no estacionamento. Teria comentado algo se tivesse percebido. Ele olhou de relance pela janela, eles continuavam lá. Voltou a se concentrar no prato à sua frente, sem a menor vontade de continuar comendo. Torcia para que Victor não demorasse.
Uma garçonete se aproximou e perguntou se podia levar os pratos. Ambos assentiram. Antônio praticamente não comeu, mas como Gabriela não sabia nada de seus hábitos alimentares, — e porque tinha coisa mais importante com que se preocupar —, não reparou nesse detalhe. Estava pensando em outra coisa e aproveitou os últimos instantes com Antônio para fazer uma última pergunta.
— Sabe o que meu tio fazia nessa empresa?
— Não. Como disse, perdi o contato com ele há muito tempo. Na verdade, nem achei que ainda estivesse trabalhando, já tinha idade mais que suficiente pra se aposentar.
— Mas o quê, exatamente, essa empresa faz?
— A NanoDot é uma gigante do ramo da biotecnologia. Seu tio deve ter feito muito por eles! Lá fazem um pouco de tudo, mas é especializada em PME. É uma sigla para Peptide-based Mechanical Engineering ou Engenharia mecânica baseada em peptídeos. Resumindo, nanotecnologia de ponta. Eles criam todo tipo de dispositivo com base em minúsculas peças feitas de proteínas.
— É a cara dele.
— Sim, exceto por ser uma multinacional interessada apenas em lucro. O professor Geraldo era um acadêmico, suas motivações eram outras. Além disso, a parte da pesquisa da qual ele mais gostava era apresentar seus resultados ao público. Já a NanoDot, vive de segredos guardados a sete chaves.
A garçonete trouxe a conta. Antônio pagou. Gabriela continuava pensativa.
— Será que esses segredos têm a ver com o sumiço dele?
— Me referi a segredos profissionais. Eles investem uma fortuna no desenvolvimento de novas tecnologias, precisam ter cuidado com as informações. Além disso, acho pouco provável que alguém tenha persuadido seu tio a se isolar, se é o que está supondo… Victor, graças a Deus! Já estava aflito por você, que horas mesmo disse que é seu voo? Vamos ter que correr.
O homem olhou meio atordoado para o casal, que já se levantava apressado. Saíram, os três, antes de qualquer apresentação formal.
Victor estacionara em um terreno próximo, conforme as instruções que recebeu de Antônio. Gabriela achou estranho o carro parado tão distante quando sobravam vagas no estacionamento e mais estranho ainda Antônio ter saído pelos fundos como se já soubesse onde o amigo havia parado. Notou também que Victor usava chinelos e uma roupa bastante casual para uma viagem, e que o carro tinha o porta-malas sem tampa… e sem malas. Mas, apesar dos sinais, Gabriela confiava em Antônio, não sabia exatamente por quê, apenas sabia que deveria, e já lamentava estar prestes a perder sua companhia.
Após um rápido trajeto, chegaram ao endereço de Gabriela. Ela desceu do carro, se despediu, agradeceu e desejou boa sorte a Victor. Antônio quis pedir seu número, mas achou que seria inadequado. Coube a Gabriela a iniciativa.
— Posso pegar seu contato? Just in case…
Trocaram os números de telefone. Antônio arrancou o carro como se o embarque de um amigo dependesse dele. Pararam duas quadras à frente.
— Ok. Qual é o babado? Pode ir me contando de uma vez.
— Obrigado, Victor, você me salvou. Vou te contar sim, podemos ir pra sua casa?
Victor respondeu com um sorriso fingindo — ou nem tanto — segundas intenções.
Antônio falou sobre Geraldo, sobre a inusitada herança que recebera do orientador falecido, sobre Gabriela, a amostra de tumor e os homens que os seguiram. Victor achou que seria o caso de acionar a polícia, mas Antônio, assustado que estava, sequer anotara a placa do carro que os seguiu, e não achava que tinha elementos suficientes para colocar a polícia na história. Também mostrou a Victor a mensagem que recebeu.
— Número desconhecido?
— Sim.
— Menino, quem tem seu telefone deve ter também seu endereço. Você não está pensando em voltar pra casa hoje, está? Vai ficar aqui comigo! Por segurança. Podemos tentar descobrir quem foi o energúmeno que te mandou essa mensagem.
Antônio sentiu que Victor estava se aproveitando da situação, forçando uma intimidade que sempre desejara, uma justa recompensa pelo favor prestado. Porém, não podia negar que estaria mais seguro ali, não conseguiria dormir em seu apartamento, preocupado com uma possível invasão.
A noite, no entanto, não foi muito mais tranquila fora de casa. Antônio não parava de criar hipóteses para o que ocorrera naquele dia. Não estava certo dos próximos passos, mas tinha uma certeza: não desprezaria a amostra, ao contrário, estava ansioso por iniciar as análises.
Não foi trabalhar na segunda-feira nem na terça. Suspendeu suas aulas alegando motivos de saúde. Na quarta foi ao campus com Victor buscar seu carro no estacionamento do restaurante, depois passou em seu apartamento e fez uma mala às pressas. Ainda não se sentia seguro. E o que era para ser uma noite na casa de um amigo se tornou uma longa estadia. Logo os dois passariam — previsível e inevitavelmente — a dividir a mesma cama.
Apenas na sexta-feira Antônio voltou ao Instituto, ainda desconfiado e temeroso, embora a semana tivesse passado sem qualquer evento suspeito. Não viu mais qualquer sinal dos homens misteriosos. Também não teve o apartamento arrombado como temia que acontecesse nem recebeu novas mensagens, apesar da insistência dele em tentar contato com a pessoa que o escrevera e cuja identidade permanecia um mistério. Para Gabriela escreveu todos os dias, queria ter certeza de que estava bem, o que aparentemente era o caso. Aos poucos a lembrança daquele estranho domingo chuvoso foi deixando de representar uma ameaça, e o professor pôde se debruçar na análise do material colhido pelo médico legista.
Nos primeiros dias dedicou poucas horas à tarefa, mas, à medida que os resultados inusitados foram se sucedendo, debruçou-se no trabalho com um afinco pouco usual, a ponto de Victor começar a se preocupar com sua saúde mental; ele achava que a mensagem misteriosa o deixara obcecado por aquelas amostras. Ao fim de um mês, Antônio passava mais tempo no laboratório do que em qualquer outro lugar, chegando a virar noites nas bancadas.
***
Passaram-se quarenta dias desde o velório. Como não conseguia dormir, Gabriela levantou-se da cama, cambaleou como um zumbi, desviando-se do inconveniente sofá vermelho no meio da sala, e foi até a cozinha. Pegou um copo no armário e em seguida abriu a geladeira em busca de algo para preenchê-lo. Não que estivesse com sede ou fome, só precisava executar qualquer tarefa simples que desviasse sua atenção dos pensamentos que insistiam em ocupar sua cabeça.
Encontrou uma caixa de leite. Encheu o copo, mas não bebeu, apenas sentou-se diante dele com o olhar distante. Continuava perdida em lembranças, rotina desde a notícia da morte do tio. Estava tão absorta nesse estado de espírito estranho à sua personalidade que, a despeito da perspicácia nata, não havia notado que continuava sendo seguida onde quer que fosse pelos dois estranhos do hospital.
Naquele dia, em especial, havia trabalhado até tarde, e o estado de confusão mental causado pelo cansaço fazia os pensamentos seguirem caminhos estranhos, começando em sua consciência e migrando depois para outro lugar, esfumaçando-se como ocorre nos sonhos.
Estava nessa embriaguez de exaustão quando ouviu o telefone vibrar sobre a mesa. Não se animou a olhar quem ligava, apenas esperou o aparelho parar de se mover. Dez segundos depois, nova tentativa de contato. Novamente Gabriela esperou até que o inconveniente interlocutor desistisse. Dois minutos se passaram. Terceira tentativa. Não estava com humor para atender ligações, mas como esse estado de espírito lhe ocorria com alguma frequência, desenvolveu uma regra pessoal para lidar com a questão: quando não quisesse usar o celular, só atenderia as ligações de quem tentasse contato por mais de três vezes em menos de dez minutos, o que indicava algo de fato urgente.
Esqueceu-se definitivamente do leite e ficou olhando para o aparelho, desejando que as chamadas parassem na terceira. Mas o celular vibrou de novo. Pegou o aparelho e viu na tela o nome de Antônio. Claro, quem mais ligaria a essa hora? Também não deve estar conseguindo dormir. Relutou em atender, mas não podia quebrar sua própria regra.
— Alô.
— Gabriela, desculpe ligar a essa hora, mas não pude esperar. Descobri uma coisa sobre seu tio, mas é absurda demais para eu te explicar por telefone. Preciso que venha aqui no laboratório amanhã, você consegue?
— Você está na universidade?
— Sim, trabalhei o dia inteiro numa coisa. É o que quero te mostrar.
— Antônio, vai descansar, você se envolveu demais nisso. Amanhã à tarde eu passo no laboratório, ok? Te aviso quando estiver a caminho. Agora vá dormir, sonhe com os anjinhos.
Ela não esperou a resposta, finalizou a chamada e desligou o celular. Jogou o leite na pia e voltou para a cama.
Por um lado, estava chateada por ter atendido a ligação que não era urgente coisa alguma; por outro, feliz pelo rápido diálogo que lhe tirara do incômodo estado de letargia mental em que estava, como se falar em voz alta a tivesse arremessado de volta à realidade. Deitou-se, se cobriu até a cintura, fechou os olhos e tentou se concentrar na lembrança da voz de Antônio na ligação para afastar os pensamentos inoportunos. Funcionou. Gabriela pegou no sono em minutos.
Acordou de bom humor no dia seguinte. Preparou o café da manhã ao som de músicas aleatórias escolhidas pelo streaming e, enquanto comia seu sanduíche de ovo, pensou em Antônio. Não fui muito justa ontem, ele parecia aflito. Deve ter descoberto algo realmente importante dessa vez. Decidiu que anteciparia o encontro, imaginava que estivesse ansioso por isso, e queria compensar a forma rude como terminou a conversa por telefone.
Antônio atendeu ao primeiro toque, como se estivesse olhando para o celular à espera da ligação. Ficou entusiasmadíssimo com a notícia de que ela já estava a caminho e a recebeu ainda no estacionamento. Gabriela estava especialmente radiante naquela manhã, a despeito do jeito extremamente simples como se vestia ou talvez por isso mesmo. Usava uma calça larga de algodão cru, uma camiseta verde de propaganda de uma editora e um longo brinco apenas na orelha esquerda.
Caminharam até o laboratório. Durante o trajeto, ele não parava de falar, uma empolgação um pouco assustadora, principalmente considerando sua aparência. As olheiras denunciavam a noite em claro, e os cabelos embaraçados davam um tom de loucura às frases que saiam desenfreadas, a maioria sobre como foi difícil chegar à conclusão, como o professor Geraldo era um gênio, que teriam muito trabalho pela frente, e outras coisas descontextualizadas.
Ao chegarem, Antônio pegou alguns papéis, sentou-se à bancada e convidou Gabriela a fazer o mesmo. Ele fechou os olhos, respirou fundo, retomando a calma necessária para iniciar a conversa e depois começou a falar, de forma mais tranquila para alívio dela.
— Você se lembra quando me perguntou sobre a NanoDot e te falei que eles utilizam pequenas peças proteicas para produzir dispositivos nanotecnológicos?
Gabriela achou a pergunta estranha, mas assentiu.
— Pois bem, isso é possível porque proteínas são muito versáteis. O que a NanoDot faz não é nada mais que imitar a estratégia natural das células. As proteínas podem ter os mais diversos formatos e características, por isso pode-se dizer que funcionam como pequenas peças de uma máquina.
— Isso vai ser uma aula sobre proteínas? Tinha me preparado para outra coisa.
— Eu te disse que a descoberta que fiz é absurda, preciso que você entenda alguns conceitos, caso contrário duvido que acreditará no que vou te mostrar. Apenas tente seguir o raciocínio.
— Sua sorte é que hoje estou de bom humor — respondeu Gabriela e completou cochichando como se fosse revelar um segredo — e espero continuar com ele.
— Pois bem, como as proteínas conseguem ter tantas características distintas, você deve estar se perguntando.
— Não estou não.
— Vou explicar. As proteínas são formadas por aminoácidos, que são moléculas simples, bem pequenas, mas com características muito interessantes. Uma dessas características é a capacidade de se ligarem uns aos outros por meio de reação química. Cada aminoácido consegue se ligar a outros dois, de modo que eles podem formar uma longuíssima cadeia linear, que chamamos de polipeptídio.
— Parou! Já deu. Olha, Antônio, nunca gostei de química, na verdade era a única matéria em que eu colava pra passar de ano na escola. Não sei aonde você quer chegar, mas não acho que isso vai dar certo.
— Calma, Gabriela, já vamos chegar na parte importante.
Ela respirou fundo e fez um sinal para que ele continuasse.
— Essas longas cadeias de aminoácidos se enrolam como um novelo de lã para dar origem às proteínas em sua forma tridimensional. Para isso, os aminoácidos da cadeia interagem uns com os outros, ou seja, a mesma sequência de aminoácidos sempre dará origem à mesma proteína, com o mesmo formato. Toda a espetacular variedade de proteínas no nosso organismo é formada dessa maneira e pela combinação de apenas vinte aminoácidos diferentes.
— Só vinte?
A pergunta não refletia um interesse genuíno de Gabriela, apenas uma forma de demonstrar alguma curiosidade em resposta ao entusiasmo do professor e talvez uma tentativa desesperada de interagir para espantar o tédio que aquela enxurrada de informações começava a trazer.
— Na verdade, vinte e um se considerarmos a selenocisteína. Estou falando tudo isso porque é importante você entender que a sequência de aminoácidos que forma uma proteína é uma informação crucial para nossa sobrevivência, por isso precisa ser mantida com precisão, quase não há margens para erro. Imagine, vinte pequenas moléculas capazes de criar as bases fundamentais da vida, assim como apenas vinte e seis letras do alfabeto conseguem dizer qualquer coisa.
A última frase soou poética para Gabriela. Um pouco forçada, mas com alguma profundidade, o que fez surgir um fio de interesse naquela aula particular. Antônio pareceu ter notado que fisgara sua atenção.
— Agora vem a parte realmente importante para o nosso caso. A informação sobre essas sequências, a receita para a construção de cada uma das nossas proteínas está no nosso DNA.
Antônio abriu seu notebook, virou a tela para Gabriela e deu play em um vídeo. Era uma animação sobre a estrutura do DNA. Primeiro apareceu a famosa escada retorcida, mas à medida que a câmera dava zoom na estrutura, foi possível perceber que a escada era, na verdade, feita de pequenas bolinhas, que Gabriela supunha serem átomos. A animação seguia partindo a escada em duas partes, quebrando ao meio todos os degraus. Uma das partes desapareceu, e a legenda informou que o código genético estava apenas na metade que sobrou. O vídeo seguia aproximando ainda mais uma porção da “meia-escada” restante, que agora lembrava um dos lados de um zíper aberto.
— Chamamos essa estrutura de “fita”. O DNA é formado por duas delas, e cada fita por sua vez é formada pela união de moléculas menores chamadas nucleotídeos, os degraus da “escada”. Eles são apenas de quatro tipos diferentes.
— Já sei, as tais letrinhas do genoma, certo?
— Exatamente! C de citosina, G de guanina, A de adenina e T de timina. As quatro bases nitrogenadas que formam os diferentes nucleotídeos que compõem nosso DNA. É a sequência dessas bases que gera o código para formar nossas proteínas.
— São só quatro letras pra vinte aminoácidos?
Gabriela se surpreendeu com a própria pergunta. Sentiu-se como os colegas nerds do colegial. Mas aquela aula particular também resgatou nela memórias nostálgicas de conversas com o tio.
— O código transcrito é formado por grupos de três bases chamados códons. Cada códon é copiado a partir dessa sequência do DNA e remete a um dos vinte aminoácidos, à exceção de alguns que indicam o fim da sequência. — Ele pegou uma folha de papel e passou a rabiscar. — Por exemplo, se um fragmento do DNA apresenta a sequência CGAGATTCC, o código será CGA-GAT-TCC, que, por sua vez, representa os aminoácidos arginina, aspartato e serina, nessa ordem.
— Você conhece esse código inteiro assim de cor?
— Não. Decorei esse exemplo pra essa pequena explanação.
— Ok. Você rememorou os meus tempos de escola, muito obrigada por isso! Mas, se demorar para chegar na parte realmente interessante, não sei se vou alcançar o raciocínio…
— Estamos chegando lá. Quando comecei a analisar a amostra de tumor do seu tio, uma coisa me chamou a atenção: uma quantidade muito elevada de mitocôndrias nas células tumorais.
— Mitocôndrias são aquelas coisinhas que ficam dentro da célula, certo?
— Isso. São organelas especializadas na produção de energia para as células funcionarem. É comum encontrar uma quantidade excessiva de mitocôndrias em células tumorais, mas não no tipo de tumor do seu tio.
Gabriela apenas começou a tentar imaginar o que Antônio estava prestes a revelar, mas por alguma razão teve receio de levar as conjecturas adiante e voltou sua atenção novamente à explicação do professor.
— A mitocôndria tem DNA dentro dela. Fiz o sequenciamento, que é a “leitura” desse DNA para identificar quais proteínas são codificadas. O resultado está nesse arquivo.
Antônio mostrou mais uma vez a tela do seu computador que exibia um gráfico colorido semelhante a um eletrocardiograma, mas muito irregular e, abaixo das linhas em zigue-zague, uma sequência de letras: TGTGCACGCTGG…
— O sequenciamento revelou um DNA mitocondrial sem grandes novidades, com pouco mais de quinze mil nucleotídeos e o código para proteínas bem catalogadas. Mas a maior parte do DNA extraído era composto de um fragmento muito pequeno, pouco mais de mil nucleotídeos, com essa sequência que você vê aqui, que não corresponde a nenhuma proteína conhecida.
— Você descobriu uma proteína nova?
— Não. A princípio parecia apenas uma sequência randômica de nucleotídeos, mas depois percebi uma quantidade enorme da sequência TGA. Esse é um código de parada, não codifica aminoácidos e deveria aparecer apenas no final de cada sequência codificante, mas nesse caso correspondia a dezessete por cento de todo o DNA, o que me deixou ainda mais intrigado. Estatisticamente, é impossível que seja uma sequência randômica. Tentei diferentes frames de leitura, ou seja, todas as possibilidades de combinações para formação de códons, e nenhum deles levou a uma sequência de proteína conhecida. Nenhum dos resultados fazia sentido. Li dezenas de artigos científicos, tentei formular algumas hipóteses, mas os dados eram muito diferentes do que mostra a literatura especializada. Foi então que me ocorreu uma ideia.
Gabriela se consertou na cadeira, sentia que chegara a hora da tal revelação absurda.
— Pense comigo: seu tio trabalhava numa empresa de biotecnologia que manipula proteínas e DNA para fins comerciais e detém tecnologias avançadas cujos detalhes são segredos absolutos. Ele morre em condições misteriosas, mas deixa a amostra de um tumor para que seu ex-aluno analise. Esse tumor apresenta uma característica rara que me leva a investigar o DNA mitocondrial. Então descubro uma sequência sem sentido biológico…
— Aonde você quer chegar?
— Seu tio planejou isso. Sabia que eu chegaria nesses dados, queria passá-los pra mim!
A ideia não pareceu absurda de início, mas foram necessários poucos segundos para Gabriela revisar a teoria e reproduzi-la, incrédula, em voz alta:
— Você está me dizendo que meu tio colocou esse DNA dentro das células do tumor dele só pra você encontrar depois?
— Eu disse que iria parecer absurdo. Acredite, se você conhecesse as dificuldades técnicas da manipulação de material genético nesse nível acharia ainda mais improvável.
— Olha, Antônio, me desculpa, mas acho que você está levando isso longe demais. Talvez a explicação seja bem mais simples. Tem de tudo dentro de um tumor, não é mesmo? Certa vez ouvi meu tio dizer que eles não seguem as regras da natureza.
— Gabriela, como cientista, aprendi a buscar sempre a explicação mais simples para os fenômenos, mas nesse caso os indícios se tornavam mais fortes à medida que eu investigava. No início, achei que se tratava do código para uma proteína produzida pela NanoDot, mas por que razão ele compartilharia isso comigo? Traduzi o código em sequência de aminoácidos, simulei a forma da proteína em computadores, busquei semelhança com proteínas descritas em todas as espécies, mas nada disso me levou a um passo sequer adiante. Até que a ficha caiu! Cada um dos aminoácidos que formam as proteínas é representado por uma letra diferente, quando prestei atenção na sequência de letras, percebi que seu tio deixou uma mensagem. Literalmente. Ele escreveu um bilhete pra mim, usando suas próprias células.
Gabriela permaneceu calada, não sabia o que pensar.
— O códon de parada foi usado para separar as palavras, por isso aparecia com tanta frequência. Nosso alfabeto tem vinte e seis letras, e o código apenas vinte e uma, ficando de fora b, j, o, x e z, então ele precisou fazer adaptações usando as letras k, w e y, pouco frequentes no português. k foi usado como b, y como j e w como o. Palavras com x foram escritas com ch e aquelas com z foram escritas com s. Não foi difícil entender as adaptações…
Assistindo à perplexidade de Gabriela, e antes de ela supor que perdera o juízo — se já não estivesse convencida disso —, Antônio lhe entregou uma folha de papel com dois parágrafos curtos impressos.
— Leia você mesma o resultado da decodificação. Lembre-se: o que você está vendo é a sequência fiel do DNA nas células tumorais do seu tio, convertida para o código internacional de aminoácidos, nada disso saiu da minha cabeça.
carw_antwniw_naw_se_assuste_essa_fwi_a_unica_fwrma_que_encwntrei_de_me_cwmunicar_a_nanwdwt_guarda_um_segredw_perigwsw_vwce_precisa_ayudar_naw_pwssw_diser_tudw_aqui_cwlwquei_a_echplicacaw_cwmpleta_nw_vidaplus_especial_mas_sw_vwce_tem_a_chave_para_decwdificar_a_mensagem_prwcure_na_mwsquitinha_chr_cincw_p_quinse_pwntw_trinta_e_tres_tert_intrwn_um_kwa_swrte_
Caro Antônio, não se assuste, essa foi a única forma que encontrei de me comunicar. A NanoDot guarda um segredo perigoso, você precisa ajudar. Não posso dizer tudo aqui, coloquei a explicação completa no VidaPlus especial, mas só você tem a chave para decodificar a mensagem, procure na mosquitinha chr5p15.33 TERT íntron 1. Boa sorte.
Gabriela sentiu um frio lhe subir as pernas ao ler o final da mensagem. Estava considerando tudo aquilo um grande devaneio de Antônio até ver a palavra “mosquitinha”. Antônio aguardou, apreensivo, alguma reação dela, que continuava com o olhar fixo no papel e assim permaneceu por longos minutos. Depois ergueu a cabeça, olhou para ele, que pôde notar seus olhos marejados, e falou:
— Mosquitinha era o apelido que meu pai usava comigo quando eu era criança.
Antônio entendeu naquele instante onde procurar a tal chave secreta.
— Gabriela, o segredo que seu tio quer nos contar está guardado no seu DNA.