OBSERVAÇÃO:
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Ele ganhou sua primeira bicicleta aos 8 anos de idade. Era um modelo para adultos, adolescentes pelo menos, mas foi a menor que seu pai encontrou com marcha, um detalhe sublinhado na carta ao Papai Noel. Como qualquer criança, ele ficou muito feliz com o presente, mas do jeito que só Geraldo sabia ser, ficou eufórico com o mecanismo da marcha.
Tão logo tirou o laço verde do guidão, saiu pedalando pela rua. Aprendera a andar de bicicleta em condições bastante adversas, de modo que o tamanho desproporcional da sua não o incomodava. Enquanto pedalava ia trocando as marchas e só parou quando teve certeza de ter experimentado todas. Minutos depois, suado, na garagem de casa, analisava cuidadosamente a bicicleta que, com muito esforço, conseguira colocar de cabeça para baixo. O que começou com uma curiosidade de garoto passou a uma espécie de desconforto por não entender o funcionamento daquele dispositivo.
Geraldo era muito esperto, um observador perspicaz, e aquela engenhoca o intrigou como nada antes. Percebeu que as marchas da sua bicicleta nova eram, na verdade, combinações de catracas, que faziam a corrente se tensionar em diferentes intensidades e que alteravam a quantidade de pedaladas necessárias para percorrer a mesma distância, mas não entrava na sua cabeça como aquilo resultava em maior facilidade para subir uma ladeira.
O que mais o irritava era a plena consciência de que tinha repertório cognitivo e subsídios teóricos suficientes para intuir por conta própria os princípios daquele mecanismo (embora ainda não tivesse vocabulário suficiente para pôr o pensamento nesses termos). Isso fez a curiosidade inicial se tornar, aos poucos, uma espécie de raiva irracional, como aquela que sentimos da mesa quando machucamos o dedinho do pé. O sentimento pareceu tão esquisito naquele contexto que o menino optou por evitar usar sua bicicleta nova por alguns dias, até que seu espírito se acalmasse, ou que encontrasse uma explicação convincente para as marchas. Geraldo não sabia, mas naquele dia nasceu um cientista.
Aos 12 anos, com a morte do pai, se mudou para a capital do estado. Foi morar com um tio, que, poucos anos depois, viria a morrer do mesmo tipo de câncer que vitimou seu pai. Coisa de família. A mudança foi ideia da mãe de Geraldo, que não suportava mais ver a tristeza do menino, e sabia que só uma cidade grande lhe daria as oportunidades que merecia. Sabia da fama de inteligente do filho na única escola particular da pequena cidade onde moravam. Ela disse querer que seus dois meninos saíssem da cidade, só para reduzir a culpa que sentia ao desejar esse destino apenas para o caçula, que sempre foi mais apegado ao pai. Por isso, recebeu com alívio — e ainda mais culpa — a recusa do mais velho em ir com o irmão.
A partir dali, tudo ocorreu como o esperado para Geraldo. Boas notas na escola, interesses incomuns, mas que não chegavam a ser excêntricos, e poucos amigos até o segundo ano do ensino médio; foi quando, por maturidade ou interesse, muitos colegas passaram a convidar o nerd para os programas fora da escola. Se surpreenderam ao saber que o rapaz tocava violão e fumava maconha, atributos que não se encaixavam no estereótipo. Herdou ambos os hábitos do tio. Terminou o ensino médio quase como uma celebridade entre os colegas e os professores.
Contrariando as expectativas da mãe e do irmão, que tentaram convencê-lo por diversas vezes a cursar medicina, Geraldo ingressou no curso de graduação em Biologia. Passou em primeiro lugar no vestibular, com nota muito superior ao segundo colocado. Na faculdade, viveria os três eventos que transformariam para sempre sua vida: se encantaria pela bioquímica, conheceria Davi e se apaixonaria por Elizabeth.
A história com a bioquímica começou logo no primeiro dia, antes mesmo da primeira aula, em uma apresentação de boas-vindas do coordenador. A palestra era sobre a versatilidade do profissional biólogo. O primeiro slide trazia apenas duas frases: “Biologia é a ciência que estuda a vida em suas diversas formas” e “o que é vida?”. Geraldo pensou ser uma pergunta retórica, mas logo percebeu que estava diante de um tema que de fato suscitava discussões acadêmicas acaloradas.
O coordenador era também o professor de virologia e, em algum momento, se referiu aos vírus como o elo entre o vivo e o não vivo. Não era a primeira vez que Geraldo ouvia sobre a controversa natureza dos vírus, que seriam considerados os seres vivos mais simples ou as estruturas biológicas não vivas mais complexas, a depender do conceito de “vida” que se adotasse.
— De fato, se tomarmos os seres humanos como referência de forma de vida mais complexa, seriam os organismos unicelulares procariontes, como as bactérias, as formas de vida mais simples? — dizia o palestrante. — Não dá para negar que uma bactéria funciona, em termos bioquímicos, exatamente como cada célula individual do nosso próprio corpo, mas seriam os vírus coisas não vivas só porque não conseguem se replicar sem parasitar uma célula? Vejam, em termos funcionais eles se reproduzem, inclusive causando doenças, como fazem as bactérias. Não seria essa persistência no objetivo de perpetuar a espécie, seja por imposição divina ou capricho da seleção natural, capaz de definir por si só o que é vida? Porém, se adotarmos tal definição estaremos incluindo no hall dos seres vivos os príons. Já ouviram falar dos príons? São agentes infecciosos, como os vírus, porém de estrutura muito mais simples, pois não passam de uma molécula de proteína. Ocorre que essa proteína tem um defeito em sua estrutura tridimensional que promove danos celulares e o poder de induzir proteínas normais a mudarem sua estrutura para assumir a mesma forma do príon. Podemos considerar uma única molécula, um aglomerado de átomos, como algo vivo?
Diferente da maioria dos colegas, que tinham dificuldade de acompanhar tantas informações despejadas de uma só vez pelo palestrante, Geraldo foi absorvido pela fala dele. Saiu do auditório direto para a biblioteca para pesquisar sobre os príons e acabou passando todo o dia lendo sobre proteínas em livros de bioquímica. As informações sobre como a vida se organiza em nível molecular o entorpeceram de tal forma que não conseguia parar de ler.
Uma euforia tomava conta do seu corpo a cada novo conceito assimilado. Então é isso que somos, um amontoado de moléculas, organizadas numa complexidade inconcebível, realizando trilhões de processos coordenados pela termodinâmica. Entender o funcionamento das coisas vivas no nível mais detalhado possível se revelava uma experiência atordoante. Reações químicas: essa é a base de tudo, do movimento de um dedo ao sentimento de alegria. Naquele dia, Geraldo experimentou uma sequência de epifanias que o lançariam numa viagem sem volta ao estudo daquelas moléculas.
Ele conhecia a teoria da evolução das espécies e o argumento anticriacionista dos bilhões de anos necessários para atingirmos o estado atual do planeta, mas não pôde deixar de pensar em Deus. Ele, que nunca fora religioso — até chegou a se anunciar ateu em algumas ocasiões —, sucumbiu ao pensamento sobre a existência de um ser supremo por trás da complexidade assustadora que se desvelava à sua frente.
O viés espiritual, no entanto, não vingou, e Geraldo teve sua promissora carreira acadêmica guiada por um ceticismo pragmático. Foi assim durante toda a graduação, o doutorado em biologia molecular e na atuação como professor, pesquisador e orientador de pós-graduandos.
Davi foi um acontecimento à parte, uma contrapartida da vida por todo o tempo que, a partir dali, Geraldo devotaria à ciência. Quem assistiu ao primeiro encontro dos dois jamais imaginaria que se tornariam melhores amigos a partir daquele mesmo dia. Geraldo andava em direção ao restaurante universitário, distraído com seus pensamentos — como de costume — e não reparou no rapaz agachado bem no meio do caminho; tropeçou e provocou a queda de ambos.
— Porra! Está cego, caralho?!
Geraldo não soube como reagir. Sequer conseguiu pedir desculpas. De fato, não vira o rapaz. A queda provocou um enorme susto, mas a reação foi o que realmente o pegou desprevenido. Não que a agressividade não fosse justificável pela situação, um reflexo, mas ele não lidava bem com quem o xingava. Seu tio era tudo menos conservador, mas jamais o ouvira dizer palavras daquele tipo, e acabou adotando a mesma prática. Na verdade, pessoas que usavam muitos xingamentos exerciam nele certo fascínio, como se pudesse sentir nessas pessoas um tipo de liberdade da qual ele se privava; e Davi conseguira enfiar dois palavrões numa frase com quatro palavras.
— Não vai falar nada? Olha só que merda! Ainda conseguiu me sujar inteiro.
— Desculpe, eu não vi.
Davi resmungou qualquer coisa, terminou de atar os cadarços — o que estava fazendo quando foi derrubado — e seguiu seu caminho. Geraldo ficou no chão por alguns segundos, como se fosse uma ofensa se levantar antes do outro. Só depois que Davi lhe deu as costas, seguiu também seu caminho. Minutos depois, por não haver alternativa, os dois sentaram-se juntos à mesa do refeitório lotado.
— Olha só quem está aqui! Desculpa, cara, fui meio grosso com você, sei que não me derrubou de propósito.
Ele era baixo e forte, tinha cabelos lisos que precisava tirar da testa todo o tempo e usava camisas largas, que pareciam de outra pessoa. Estava exatamente como no momento do incidente, mas ali, sem o tom de raiva na voz, parecia outra pessoa.
— Eu que peço desculpas, estava andando com a cabeça na lua! — respondeu Geraldo.
— Tudo bem. Davi, biologia, quarto semestre. Muito prazer.
— Geraldo, seu calouro.
— Que nome de velho!
Os dois riram. Conversaram bastante enquanto comiam. Uma conversa rápida, mas suficiente para Geraldo descobrir que Davi sentia pela área de bioinformática a mesma paixão que ele recentemente descobrira pela bioquímica. Nos semestres seguintes, os dois se tornariam amigos tão próximos que levantariam suspeitas entre os colegas de que mantinham um relacionamento amoroso, rumores com que eles se divertiam. Parecia que a amizade resistiria a tudo, mas os caminhos que cada um seguiu reduziram notavelmente o contato, pelo menos até o dia em que Davi fez a proposta irrecusável que levaria Geraldo a sumir do mapa por vinte e três anos.
Faltavam poucos créditos para a conclusão do curso quando Geraldo decidiu, por sugestão do seu futuro orientador de doutorado, se matricular em uma disciplina optativa sobre biologia do câncer. A professora, uma médica aposentada, chamava-se Elizabeth e ganhou a atenção de Geraldo já na primeira aula devido à sua abordagem peculiar sobre o assunto da matéria.
Elizabeth não tratava o câncer como uma doença, mas como um processo natural contra o qual devíamos lutar entendendo os limites, uma espécie de efeito colateral esperado da regulação genética em organismos multicelulares, e isso trazia uma perspectiva diferente às discussões fomentadas por ela em sala de aula.
A experiência dela era outro grande diferencial. Acostumado a professores estritamente acadêmicos, Geraldo vivenciou o mesmo frenesi de quatro anos atrás — quando descobriu a bioquímica nos livros empoeirados da biblioteca do Instituto de Biologia — ao ver a professora aliar explicações sobre a carcinogênese em nível molecular com as histórias dos pacientes que atendeu enquanto atuava como oncologista.
A magia de unir um conhecimento tão específico a questões profundas da natureza humana fazia de Elizabeth uma entidade quase mística aos olhos de Geraldo. Esse fascínio não passou despercebido: na terceira aula, ela já reservava meia hora, após liberar a turma, para aprofundar com seu aluno mais aplicado o que foi discutido.
As conversas sempre se iniciavam na patologia e terminavam na filosofia. Geraldo finalmente começava a romper a casca de pragmatismo que não o deixava analisar qualquer fenômeno, de qualquer natureza, senão por lentes da mais pura lógica. Certa vez, depois de uma aula sobre mecanismos de ação de drogas quimioterápicas, a conversa pós-aula avançou para a temática de cuidados paliativos.
— Pra mim soa como desistir de tentar, não gosto da ideia.
Mas o contra-argumento da professora vinha sempre como um xeque-mate:
— Tentar o quê? Sobreviver a qualquer custo? Do que vale a vida se não puder ser aproveitada? Às vezes é preciso tirar o foco da doença e pôr no doente, meu querido, e nem sempre a cura está em eliminar seu tumor, mas em aceitar sua condição.
A forma como ela sempre fazia questão de lembrar o que significavam as limitações de ser humano o devastava, era como um soco no estômago, ou melhor, no ego.
Então era isso: quatro longos anos dedicados a estudar o que ele considerava a ciência mais pura, o mais próximo que se podia chegar dos segredos da vida como a conhecemos, para uma senhora gentil e serena puxar seu tapete e mostrar as múltiplas perspectivas pelas quais é possível ver o mundo.
O que ele não sabia é que se construía naquela relação uma via de mão dupla. Também Elizabeth ficava impressionada com a argumentação do aluno, como quando ele tirou seu sono a fazendo pensar sobre a pouco explorada neuroquímica oncológica.
— Mas pense comigo, professora, se nossos pensamentos são derivados de sensações e sentimentos que experimentamos, que, por sua vez, se baseiam na ação de hormônios e neurotransmissores, e se o câncer altera o equilíbrio bioquímico do paciente, quanto do que ele pensa, sente e decide estaria diretamente influenciado pela doença? O câncer teria o poder de corromper o próprio livre-arbítrio?
Ela via nele mais do que o futuro brilhante que todos os que o conheciam profetizavam; via algo mais, especial, que ela não sabia nominar, mas com um potencial assustador. Geraldo se permitia fazer questionamentos que, muitas vezes, seriam perturbadores para a maioria das pessoas, e parecia gostar daquilo.
Aos poucos começaram a se encontrar também fora dos dias de aula. Elizabeth apreciava passar seu tempo com o aluno. Não se casou nem teve filhos, e ainda não se acostumara ao vazio da aposentadoria depois de décadas de trabalho frenético; foi por isso que se inscreveu como professora voluntária na universidade que a formara. Já para Geraldo era algo maior. A professora o seduzira irreversivelmente. Sua sabedoria e sua abordagem heterodoxa a qualquer tema sobre o qual conversavam o inebriavam como o canto de uma sereia. A admiração se transformou em amor platônico, frequente entre estudantes — principalmente os mais jovens — em relação a professores; mas com o qual Elizabeth, sem os anos de experiência docente necessários, não soube lidar. O sentimento confuso entre eles foi nutrido e cresceu.
Aconteceu numa sexta-feira, no final do dia, quando Geraldo se ofereceu para mostrar o laboratório onde desenvolvia pesquisas sob orientação de uma dupla de professores. Como sempre, tagarelavam enquanto andavam entre as bancadas abarrotadas de vidrarias e equipamentos. Talvez tenha sido o assunto específico que discutiam, talvez o ambiente familiar que encorajou o jovem ou a simples eclosão de um pensamento intrusivo, mas Geraldo foi tão rápido ao beijá-la que a reação de Elizabeth só veio quando as línguas já se tocavam. Ela o empurrou assustada.
— Geraldo, o que é isso?!
— Desculpe, não sei o que deu em mim, eu…
— Você está confuso. Me desculpe, meu querido, não achei que estivesse alimentando algo assim.
Geraldo ficou vermelho. Baixou a cabeça segurando o choro. Uma torrente de emoções difíceis de controlar — ou mesmo entender — tomou cada célula do seu corpo. Elizabeth se aproximou e pousou a mão em seu ombro.
— Não se preocupe com isso, foi só uma grande confusão.
Geraldo levantou a cabeça e a olhou nos olhos. Não disse nada, não precisava. Elizabeth jamais seria capaz de superar a intensidade daquele olhar. Desconsertada, ela desviou o rosto e em seguida saiu do laboratório.
À noite, a professora sonhou com o aluno. Um sonho erótico como não ousou sonhar nem na adolescência.
Acordou tonta e suada, com uma febre repentina e a carne trêmula. Ainda sentada na cama, recobrou a consciência da realidade e foi abatida por um constrangimento tão grande que era sentido como uma dor física. Tentou se convencer em silêncio de que não passava de uma brincadeira do seu subconsciente, de uma resposta noturna a uma situação impactante pela excentricidade. Mas sabia que só estava tentando encobrir a embaraçosa realidade, a de que um jovem trinta anos mais novo conseguira garimpar sua alma e arrancar de lá os vestígios de sua sexualidade há tempos esquecida.
Ela era madura, sabia que situações como aquela exigiam ação rápida.
No dia seguinte, encontraram-se em um café para conversar. A iniciativa foi de Elizabeth, para pôr um ponto final naquilo tudo antes que tomasse proporções maiores. Seria direta nas palavras, como treinara diante do espelho. Trataria do tema com naturalidade, quase indiferença, e logo estariam rindo, tomando café e falando sobre as proteínas que ele estudava. Simples assim. Em minutos aquele episódio não passaria de uma lembrança efêmera e irrelevante. Mas ela se esqueceu de um detalhe importante: Geraldo estava apaixonado e era inteligente, diabolicamente inteligente.
— Querido, só estou tentando dizer…
— Que não sente nada por mim além de um afeto maternal que jamais, sob qualquer circunstância, poderia vir a se tornar algo além disso.
— Não coloque nesses termos.
— Ok. Que tal assim? Eu nem cheguei aos 25 e você já beira os 60. Sou jovem, você é velha, e isso torna um relacionamento amoroso entre nós não apenas biologicamente inviável como socialmente insustentável. Não importa se eu tenha descoberto o amor, aquele sentimento nobre, divino e piegas que todos pregam como a coisa mais importante do mundo. Não importa que não haja nada que a impeça de viver essa experiência. Nada disso importa porque na nossa sociedade, talvez na nossa época, relacionamentos como esse são errados, imorais, e, portanto, proibidos.
Ela percebeu que jamais venceria a discussão. Limitou-se a ouvir os elaborados protestos de Geraldo, cada palavra atravessando sua dignidade com a fúria de um projétil. Ele estava com raiva, e a raiva lhe dava uma força avassaladora, era impossível contê-lo.
Elizabeth ouviu com resignação tudo o que ele despejou com ódio na mesa do café. Sabia que não era ela o motivo de tanta ira, muito pelo contrário. Ficou claro que Geraldo não nascera para acatar os padrões, ele não apenas queria desafiá-los, ele precisava; sua alma inconformada carecia daquela transgressão como seu corpo precisava de água e comida. O maior problema estava justamente ali, o que deveria causar algum nível de pânico em Elizabeth, só suscitava admiração, uma admiração louca, e uma ponta de inveja da vontade de viver que a juventude de Geraldo esfregava, irreverente, em sua cara.
Não se afastaram, como sugeria a prudência, pois uma força misteriosa os atraía em rota de colisão. Geraldo utilizava com habilidade monumental cada premissa defendida pela professora em suas discussões pós-aula. Elizabeth, tantas vezes golpeada com argumentos irrefutáveis, acabou por ceder, não por ter se convencido de que não havia nada errado naquele relacionamento entre dois adultos, mas porque a tenacidade e a integridade intelectual de Geraldo exerciam nela um poder afrodisíaco contra o qual não tinha forças para lutar.
Quando aconteceu o segundo beijo, consentido, ela fechou os olhos e se concentrou em um único pensamento: não reconheço minha idade biológica, a vida não me deu tempo de viver o que precisava, e ele é muito mais maduro que muito homem com décadas de vida nas costas. No fim nossas almas têm a mesma idade. Seguiu convicta daquilo que viria a dizer muitas vezes: depois de certa idade, a gente tem a idade que quer ter.
Cultivaram o relacionamento em segredo. Não que se importassem com julgamentos, mas estavam pouco dispostos a dar explicação às pessoas mais próximas e sabiam que nem todos tinham atingido o nível de desprendimento que alcançaram juntos.
A diferença de idade era tema frequente entre eles, falavam disso em conversas prazerosas como as que tinham desde que se conheceram, em que não havia lugar para culpa ou pudor, de modo que podiam explorar concepções mais flexíveis que as convencionais. Foi assim que chegaram à conclusão de que, como a idade cronológica não corresponde à biológica, não havia razão para praticar condutas sociais baseadas nesse rótulo, e aceitaram de vez um ao outro.
Embora já se permitissem muitas intimidades, o sexo só chegou à relação meses depois. Geraldo já havia concluído a graduação e estava no doutorado, onde ingressou direto, sem passar pelo mestrado graças ao currículo excepcional e às publicações de artigos científicos como primeiro autor. Aconteceu com a naturalidade que os dois sabiam que aconteceria. Foi bom, mas o ápice do relacionamento continuava sendo as conversas; nenhum dos dois superestimava o sexo como a maioria das pessoas faz.
Aos poucos foram conhecendo um ao outro como ninguém mais na vida de ambos — nem mesmo seus pais — conseguiram. Divertiam-se com trivialidades que os conectavam, fosse nas semelhanças — como o fato de os dois gostarem da cor marrom — ou nas diferenças: ele odiar jaca, a fruta preferida dela, a ponto de não suportar o cheiro.
Não pensavam muito no futuro, havia um pacto subliminar para viver o presente, uma certeza sem drama de que não ficariam juntos por muito tempo, por isso deveriam aproveitar enquanto estavam. A relação seguia uma dinâmica leve, prática, funcional, perfeita. Então Elizabeth descobriu o inimaginável.
— Estou grávida.
Disse assim, de forma seca, sem rodeios, serrando os dentes em seguida para não revelar o lábio trêmulo. A ideia de uma mulher quase sexagenária grávida era tão inconcebível para Geraldo que ele demorou a entender aquelas duas simples palavras.
Enquanto esperava para ouvir o que ele diria, Elizabeth foi traída por um leve arquear do canto da sua boca em direção ao queixo. Por lá transbordou todo o desespero que ela tentava conter como uma represa de maturidade e autoconfiança.
De todas as reações possíveis, diante do pânico monumental que ela controlava precariamente, ele escolheu a mais adequada: o acolhimento.
— Se for menina, chamaremos Ana. Se for menino, Henrique.
A gravidez não causava espanto em quem não a conhecia de perto, pois Elizabeth não aparentava a idade que tinha, mas, como médica, ela sabia dos riscos que correria ao levar adiante a gestação. Ainda assim, foi essa a decisão que tomaram em consenso: teriam o filho, a experiência valia o risco ou pelo menos foi o que Geraldo achou naquele momento, sem saber o quão dilacerante seria a dor de perder, na sala de parto, a única mulher que amou na vida.