OBSERVAÇÃO:
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Antônio desligou o telefone sentindo um misto de tristeza e decepção. Já se iam quase três décadas desde o último contato com seu antigo professor, mas não conseguia conceber a ideia de que ele cometera suicídio. Era a última coisa que se esperava de alguém como Geraldo.
Olhou para o pedaço de papel no qual anotara horário e endereço do velório. Não queria ir, mas sabia que seria difícil superar seu senso de dever, afinal, apesar do longo período sem qualquer notícia, o professor Geraldo havia sido seu orientador de doutorado. Ele não pensou muito a respeito, sabendo que não se convenceria do contrário, levantou-se e foi procurar uma roupa adequada para a ocasião.
O velório foi rápido, simples e constrangedor. No salão funerário, uma dúzia de pessoas, que demonstravam mais pressa do que consternação ou tristeza, movimentava-se em torno do caixão numa tentativa coletiva de preencher o espaço. A exceção era uma mulher com olhar distante, encostada em um dos cantos da sala, que por lá ficou todo o tempo. Usava um vestido azul; um azul-celeste vivo, quase festivo, que contrastava com os tons soturnos das vestimentas de todos os demais e com as paredes brancas do lugar. Antônio achou a roupa um pouco inadequada para a ocasião — não que a opinião de alguém com um guarda-roupa triste e monocromático como o dele devesse ser levada em conta —, mas havia certas convenções sociais que, ele acreditava, precisavam ser seguidas por todos.
Antônio tentava vencer a monotonia esforçando-se para se lembrar de momentos que vivera com o professor como se as reminiscências pudessem transportá-lo daquele ambiente opressor. Recordou-se do dia em que o conheceu, de quando brigou com seu orientador anterior e foi socorrido por Geraldo e de quando assumiu a gestão do laboratório sob sua confiança. Aos poucos a memória foi trazendo nostalgia e uma sensação de gratidão, como se só então tivesse percebido o papel fundamental que o falecido tivera em sua vida. Perdido nos pensamentos, olhou para o outro lado da sala e reconheceu um antigo colega de laboratório, de quem não sabia ao certo o nome… Breno, Bruno, alguma coisa assim. Ao vê-lo, o homem se aproximou e o cumprimentou sussurrando.
— Antônio, há quanto tempo! Lembra de mim?
— Claro, o homem dos polímeros de carboidratos…
— Diogo.
— Diogo. Lembro sim. Como vão as coisas? Ainda pesquisando materiais?
— Mais ou menos, agora tenho outras linhas de pesquisa, prioritárias.
Fim do diálogo. Sem mais nada a dizer um ao outro, a iniciativa do contato só serviu para provocar um leve constrangimento, por isso ambos receberam com alívio a chegada de um sacerdote, que proferiu algumas palavras — protocolares e sem emoção — antes de o caixão ser levado para o crematório.
Diogo e Antônio saíram juntos da sala. Trocaram mais algumas palavras por educação enquanto caminhavam. Falas genéricas sobre as carreiras de docente de ambos, a mudança de Diogo para o sul do país e a forma como cada um recebeu a notícia da morte do professor. Diogo estava, por acaso, na cidade para participar de um congresso e só por isso foi ao velório.
— Não tínhamos notícias dele há anos.
— Não sabia que ele ainda estava na NanoDot, Antônio, achei que tinha se aposentado.
— Ele deixou a universidade antes de se aposentar.
— Ouvi dizer que estava doente. Câncer. Sabia que tinha pouco tempo de vida.
— Também ouvi essa versão. Difícil de acreditar. O professor Geraldo era um cientista brilhante, passou a vida depositando esperança em novos tratamentos contra o câncer e, de repente, comete suicídio porque acha que não tem saída para sua própria doença? Não sei, mesmo pra quem não conhecia o professor essa história parece estranha, ainda mais…
Antônio percebeu o olhar intrigado do colega e interrompeu a fala. Agora ele acha que estou conjecturando teorias da conspiração… Mas, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, ouviu alguém chamar seu nome. Ambos olharam para trás.
— Qual de vocês é o professor Antônio?
— Sou eu.
— Prazer, me chamo Carlos. Essa é Gabriela, sobrinha do professor Geraldo.
Percebendo que o homem sequer lhe dirigiu o olhar, Diogo se despediu de Antônio e seguiu seu caminho. Carlos, um senhor alto, magro e com uma roupa elegante, estendeu a mão em cumprimento. Tinha um ar sério e muito respeitável, apesar do leve cheiro de cigarro e uísque que exalava. Usava óculos redondos, que pareciam ligeiramente pequenos para seu rosto comprido, e tinha cabelos curtos e grisalhos. Depois de apertar a mão do professor, falou em tom solene:
— Senhor Antônio, estou aqui para representar o Sr. Geraldo em seus últimos desejos. O senhor teria um minuto?
Antônio assentiu e ouviu aquele estranho falar sobre uma carta que Geraldo deixara, sobre a menção do seu nome nela e sobre um suposto testamento, em que dividia os poucos bens que tinha entre ele, a sobrinha e o filho. O professor Geraldo tinha um filho? A mulher de azul que o acompanhava ouvia as explicações com ar de reprovação. Antes mesmo que Carlos terminasse de falar, ela se manifestou:
— Não se anime, não é muito, você não ficará rico. Pra mim ele deixou um carro velho, todo o resto ficou pra esse tal filho que ninguém conhece. Parece que pra você ficaram umas bugigangas de laboratório.
Antônio notou na fala da mulher um tom de raiva; não, era de mágoa. Não parecia ser frustração com a mirrada herança, como ela queria fazer parecer, talvez revolta pelo deliberado sumiço de alguém por quem nutria muita estima. Percebera, minutos antes, seu esforço para não chorar, enquanto, no seu cantinho, ouvia o sacerdote recitar os versículos bíblicos decorados.
— De fato, senhor Antônio, ele deixou para o senhor alguns equipamentos. Não sou da área, não saberia dizer exatamente do que se trata, mas poderá ver a lista em breve. No momento há algo mais urgente. O professor Geraldo também deixou na carta alguns pedidos um tanto…peculiares.
— Que não me permitissem vê-lo nem depois de morto, por exemplo, conseguiu ser covarde até nessa hora! — esbravejou Gabriela.
Antônio confirmou sua impressão sobre ela. Um pouco constrangido com a agressividade da moça, Carlos tentou amenizar as circunstâncias.
— Ele queria que as pessoas se lembrassem do Geraldo que conheceram, e não do que a doença o tornou. Também fez outro pedido, esse bem inusitado: queria que o senhor, professor Antônio, estudasse o tumor dele. O médico legista retirou uma amostra para encaminhá-lo, caso o senhor queira atender a esse desejo.
Para Antônio, não havia nada de inusitado no pedido. O professor Geraldo o introduzira no estudo do câncer. Juntos compuseram o primeiro biorrepositório de amostras tumorais do laboratório, que viria a se tornar o maior biobanco da universidade alguns anos depois. Em pouco tempo, Antônio se tornou uma referência na análise dessas amostras por microdissecção a laser. Estudar fragmentos de tumores era a sua rotina, uma rotina que o satisfazia; essa era a maior herança deixada pelo antigo orientador. Não lhe parecia exótico, como deveria soar aos demais, o desejo de que também sua doença integrasse a pesquisa que ambos começaram juntos.
Duas horas depois estavam no hospital. Apesar das semelhanças com o laboratório, Antônio detestava aquele ambiente. A luz excessiva, o cheiro de éter impregnado nas paredes e o som da TV sem telespectadores na recepção o deprimiam.
A amostra do tumor fora acondicionada em nitrogênio líquido, segundo instruções do próprio doador, como mandava o protocolo de pesquisa. Foi colocada em um container improvisado com uma garrafa térmica da copa do Instituto Médico Legal e enviada para o hospital em condições igualmente improvisadas e inadequadas de transporte.
Sentado na sala de triagem, Antônio segurava o recipiente fumegante enquanto aguardava o termo de consentimento livre e esclarecido, assinado por Geraldo e deixado junto à carta de despedida. O termo era requisito legal para o uso da amostra em pesquisa. A fumaça que se desprendia da garrafa provocava olhares curiosos nas pessoas em volta. Ao seu lado estava Gabriela, que fez questão de acompanhá-lo, por curiosidade, supunha Antônio.
A verdade é que Gabriela não admitia que aquele desconhecido tivesse acesso a um fragmento do corpo do tio, ainda que da parte doente, quando tudo que ela guardaria dele seriam lembranças insipientes e um automóvel. Por ser incômodo — e um tanto macabro — esse sentimento foi confinado em seu subconsciente, e Gabriela convenceu a si mesma que estava ali apenas para garantir que o último desejo de Geraldo fosse devidamente respeitado. Ela olhou para Antônio, observou seus dedos das mãos ansiosos, enquanto esperava por Carlos. Imaginou se ele teve notícias do tio nos últimos anos. Ponderou se deveria ou não investir em uma interação, que não estava disposta a fazer, mas a ideia de que esse homem talvez soubesse o motivo do desaparecimento do seu tio foi mais forte.
— Quanto tempo você conviveu com ele?
— Mais ou menos seis anos. Nos conhecemos no início do meu doutorado. Eu havia me desentendido com meu orientador anterior e ele se ofereceu pra assumir a orientação da minha tese. Mas isso foi há quase trinta anos. Desde então não nos vimos mais.
— Como ele era?
Havia nítida tristeza e nostalgia na pergunta.
— Durão. Tinha muita dificuldade de demonstrar seus sentimentos, mas todo mundo sabia que era uma boa pessoa.
Ele está falando do meu tio? Para Gabriela, Geraldo era a pessoa mais terna e amorosa que poderia existir. Tinha uma maneira peculiar de falar, é verdade; não na forma, mas no conteúdo, qualquer conversa despretensiosa com ele se transformava em um debate de argumentos que estruturava de forma brilhante. Quase sempre provava estar com razão e ainda assim nunca soava arrogante, pelo contrário, era impossível não reconhecer humildade e doçura no seu jeito de falar.
O tio que ela conheceu não tinha problemas em dizer o que sentia, o fazia de forma muito direta. Gabriela recordou algumas daquelas conversas e até esboçou um sorriso, que se desfez tão logo percebeu serem memórias de uma adolescente, não da mulher madura que se tornara, com a marca da inexplicável ausência da única pessoa que amou de fato, e que agora não existia mais. A notícia da morte tirara dela até o direito ao ressentimento que a acompanhou por tantos anos, deixou-a vazia.
Em meio à dor, ela assumiu a confortável e detestável posição de vítima. Observou os pacientes e acompanhantes na recepção do hospital, imaginando se algum deles estaria passando por um sofrimento maior que o seu. Enquanto fazia a varredura visual da sala, percebeu dois homens desviarem os olhares quando se cruzaram com o dela. Fitou a recepção por alguns segundos, voltando-se em seguida para os dois, que novamente desviaram o olhar. Virou-se para Antônio, que continuava mexendo os dedos, alheio ao ambiente em volta.
— Você notou aqueles dois “cavalheiros” no final do corredor? Não param de olhar em nossa direção. Viu? Agora disfarçaram. Estou bem incomodada.
— Não. Não sou bom observador. Veja, lá vem o senhor Carlos finalmente.
Antônio se levantou apressado, pegou o papel que Carlos trazia, agradecendo-o com um aceno e saiu da sala de triagem. Virou-se para se despedir de Gabriela, mas percebeu que ela chorava. Comovido, voltou alguns passos e lhe ofereceu carona para casa. Ela não respondeu, apenas apanhou sua bolsa e o acompanhou cabisbaixa.
No carro, suas únicas palavras foram para responder quando Antônio lhe perguntou seu endereço. Não era longe dali, e era caminho para a universidade. Antônio tentou puxar assunto.
— Você mora sozinha?
A intenção da pergunta foi demonstrar sincera preocupação com Gabriela, mas logo que falou em voz alta temeu ser mal-interpretado em suas intenções e emendou:
— Esses momentos de despedida são muito difíceis, seria bom se pudesse contar com alguma amiga ou parente nas próximas horas. Desculpe se estou sendo inoportuno, não quero parecer intrometi…
— Estamos sendo seguidos!
Desperta de seu estado de letargia melancólica, Gabriela parecia nervosa. Antônio olhou pelo retrovisor. Apenas um carro atrás deles. Apesar da distância, foi possível reconhecer, pela cor das camisas e pela barba longa e óculos de acetato preto do motorista, os dois homens que, segundo Gabriela, os observavam no hospital. A primeira sensação foi de medo, um medo instintivo que no segundo seguinte se fez ridículo diante da simples constatação de que não havia motivos para estarem de fato sendo seguidos por estranhos.
— Gabriela, não acho que estejam nos seguindo, estamos na avenida principal desde que saímos do hospital, é a rota natural da maioria dos veículos.
— Vire à esquerda!
Não foi uma sugestão, foi uma ordem de alguém nervosa olhando o retrovisor. Antônio suspeitou ser uma atitude paranoica relacionada ao luto recém-instalado. Estava claro que Gabriela gostava muito do tio, e a situação devia estar sendo bem difícil para ela. Ele não questionou, não faria mal um pequeno desvio se fosse para acalmá-la. Ligou o sinal indicando a conversão à esquerda e olhou pelo retrovisor, os supostos seguidores não fizeram qualquer sinalização. O professor reduziu a velocidade e entrou numa rua bastante arborizada pela qual nunca havia passado. Seguiu por alguns metros à procura de uma esquina que lhe permitisse retornar à avenida principal enquanto Gabriela continuava olhando para trás. De repente, ela se virou para Antônio, assustada. Adivinhando o motivo, ele olhou de volta para o retrovisor. O mesmo carro continuava atrás deles.
— Pode ser uma coincidência — disse ele.
Sem sentir muita convicção nas próprias palavras, acelerou um pouco, mas a rua parecia não ter qualquer transversal. Foram cerca de três intermináveis minutos até que avistassem um semáforo. Um cruzamento, graças a Deus! Ele acelerou um pouco mais. O sinal estava vermelho, mas abriu quando se aproximaram. Antônio virou à direita e, segundos depois, viu o carro com os dois homens passar direto pelo cruzamento. Respirou aliviado e olhou para Gabriela.
— Ok. Está tudo bem. De qualquer forma, prefiro ir com você pra universidade, se não se importar — disse ela.
Ele assentiu com a cabeça; talvez tudo que Gabriela quisesse desde o início fosse manter a companhia de alguém. Apesar de não ter ouvido resposta para sua pergunta, Antônio sabia que ela morava sozinha, reconhecia quem convivia com o mesmo tipo de solidão que ele. Reduziu a velocidade enquanto conectava o aplicativo de localização para encontrar o caminho e seguiram sem novos comentários sobre a suposta perseguição.
Como era domingo, o estacionamento do Instituto estava vazio. Antônio parou na primeira vaga, bem próximo à porta, assim não precisariam andar muito, pois havia começado a chover. Uma garoa bem fina substituía o sol de mais cedo, tornando o dia ainda mais melancólico, especialmente para Gabriela. Combinaram que Antônio a levaria para casa depois de processar a amostra do tumor.
Entraram pela porta principal e cumprimentaram o vigilante, que não questionou a presença da mulher desconhecida. Foram direto ao laboratório de bioquímica do câncer levando a garrafa térmica — que agora já não deixava escapar a névoa branca, indicando o fim do nitrogênio líquido que conservava o material biológico.
Antônio pediu que Gabriela ficasse à vontade, mas ela apenas se aproximou de uma das janelas e ficou observando a chuva lá fora. Ele entrou na antessala de cultura e começou a vestir os equipamentos de proteção apropriados para o trabalho. Tirou o casaco, colocou o propé e, enquanto vestia o jaleco, observou Gabriela com mais atenção, pela parede de vidro que separava a sala de cultura do restante do laboratório.
Ela era muito bonita, o tipo de beleza peculiar que revela uma personalidade forte. O cabelo curto naturalmente alaranjado, a tatuagem de abelhas no ombro e a pulseira com pequenas conchas naturais davam um toque sutil de rebeldia e desprendimento àquela mulher que, embora certamente já passasse dos quarenta, esbanjava jovialidade. Já à primeira vista, qualquer um a perceberia como uma pessoa comunicativa, de opiniões fortes e espírito livre. Por isso mesmo, vê-la naquele estado de tristeza expunha uma contradição perturbadora.
Antônio sentiu uma vontade súbita de abraçá-la, como se precisasse acalentá-la, como se estivesse assistindo à revelação do lado mais frágil de alguém que não sabia lidar com a fragilidade. Por um instante, desejou que a história da perseguição fosse real só para ter um motivo para protegê-la, mas logo findou seu momento de contemplação para se concentrar nos procedimentos técnicos.
Gabriela por sua vez continuava olhando a chuva, agora mais forte, com uma sensação estranha de alívio. Sentia como se visse lá fora as lágrimas que se esforçava para conter; esse sentimento de que o céu, com dó, chorava em seu lugar, trouxe um pouco de paz para seu coração. Ela continuava sentindo raiva do tio por tê-la abandonado quando mais precisava dele, remoía involuntariamente essa memória, mas potencializava o sentimento de propósito para encobrir a falta quase insuportável dos momentos que viveram juntos. Era muito inteligente, sabia que viveria o luto em muitas etapas, que aquela ira seria abrandada e ficaria apenas a saudade; e perdoaria o tio, por não haver alternativa. Essa consciência tornava ainda mais desnecessário o que sentia naquele momento, mas não podia evitar.
Ela viu a chuva ficar ainda mais forte, açoitando com rajadas de vento o vidro da janela do laboratório e não pôde deixar de imaginar que a natureza compartilhava de sua raiva, como foi com sua tristeza. Entreabriu a janela sem se importar com a água que entrava e formava uma grande poça no chão. Queria ouvir melhor o som da chuva, e foi ele que lhe trouxe alguma calma.
Devidamente paramentado diante da câmara de fluxo laminar, Antônio abriu o frasco, já precariamente refrigerado, e se deparou com um pequeno fragmento amarelado congelado. Com ajuda de uma pinça, passou a amostra para um tubo de fundo cônico com meio de cultivo e viu, surpreso, o aglomerado de células se desfazer na solução avermelhada. Que estranho, parece nem ter estroma! A amostra do tumor era, de fato, muito estranha, diferente de tudo que já vira, e menor do que as que costumava coletar. Não resistiu à ideia de tentar recuperar células vivas em cultura, apesar de o transporte em nitrogênio líquido reduzir as chances de sucesso. Todo o procedimento acabou demorando mais que o esperado, o suficiente para que a chuva passasse, rebobinando o tempo para a manhã ensolarada de mais cedo, e para que Gabriela se afastasse da janela para explorar o laboratório.
Enquanto passeava entre bancadas com microscópios, frascos de todos os tamanhos e formas, computadores e pequenas placas redondas de plástico, foi se envolvendo naquele mundo tão exótico para ela, mas que foi o habitat do seu tio por praticamente toda a vida. De repente viu-se pensando em Antônio. Primeiro com uma curiosidade despretensiosa sobre sua rotina naquele lugar, depois sobre como ele parecia uma pessoa amigável. Sabia que seu julgamento sobre o caráter daquele desconhecido estava enviesado pelas circunstâncias e pelo hábito de se afeiçoar rapidamente às pessoas; mas essa era Gabriela, partia sempre do pressuposto de que as pessoas eram boas.
Ele era bonito, com aqueles braços fortes na medida certa, a pele negra e o cabelo levemente grisalho. A barba por fazer e a roupa amarrotada denotavam um homem pouco vaidoso, uma sutileza que realçava sua beleza. Pelos cálculos de Gabriela, deviam ter mais ou menos a mesma idade. Imaginou se voltariam a se encontrar, se seriam amigos. Não fantasie, Gabriela, vocês não têm nada a ver um com o outro, deixe o pobre homem em paz, ele não precisa lidar com seus traumas. Ninguém precisa.
O professor terminou o que estava fazendo e saiu da sala de cultura. Desculpou-se pela demora, mas Gabriela nem viu o tempo passar; ela gostou da sensação de estar sozinha e acompanhada ao mesmo tempo, já que podia ver Antônio concentrado no trabalho, naquela salinha que parecia um aquário, apesar de não interagir com ele. O ambiente desconhecido também ajudou a driblar a tristeza, e agora se sentia mais apta a passar o resto do dia sozinha em seu apartamento, jogada em seu sofá vermelho e pensando na vida até pegar no sono.
Antônio viu o chão molhado e foi até a janela para fechá-la antes de saírem. Ao se aproximar, olhou para o estacionamento lá fora. Um carro estava parado na última vaga, sob uma árvore. Porque alguém estacionaria tão distante da entrada em um domingo chuvoso, quando o prédio fica praticamente vazio? Aproximou-se um pouco mais e pôde confirmar a suspeita que o fez sentir um leve frio na espinha. Dentro do carro, os dois homens que os seguiam conversavam.
Afastou-se rapidamente para que não percebessem que ele os viu e tentou agir de forma natural para que Gabriela também não percebesse nada. Pegou seu casaco, apagou as luzes e a conduziu pela porta. Enquanto andavam pelo corredor, mil pensamentos passavam pela sua cabeça. Não seria apenas coincidência? Claro que não! O que querem conosco? Aliás, quem eles estão seguindo? Ela, com certeza. Não há razão para me seguirem, quanto a ela nem sei quem é, em que tipo de problema pode estar metida… Foco, Antônio! Pouco importa agora saber o que querem e com quem, o importante é conter o risco. Chamo a segurança? Não, eles os abordariam sem qualquer prova de que estão mal-intencionados. Preciso ganhar tempo para pensar.
— Está com fome? Já passa de meio-dia. Tem um restaurante aqui no campus que abre aos domingos. Se quiser, podemos almoçar por lá.
— Acho uma boa ideia.
Era mais uma lanchonete do que um restaurante, mas servia feijoada aos finais de semana e era um local bastante movimentado. Além disso, o percurso do Instituto para lá levaria dois minutos; se fossem rápidos, não haveria tempo para uma eventual abordagem dos estranhos.
Durante o trajeto, Gabriela notou o comportamento anormal de Antônio. Desde a saída apressada do prédio em que estavam, passando pela forma atrapalhada como tentou por três vezes dar partida no carro até a postura rígida que adotara ao volante, tudo denunciava o estado de preocupação e vigilância do professor. Ela sequer se lembrava do episódio com os homens misteriosos para fazer qualquer correlação.
Para ela, chegaram menos de três minutos depois; para ele, mais de uma hora. O lugar de fato tinha um movimento surpreendente para um quiosque de campus universitário no fim de semana. Antônio estacionou e ambos desceram do carro.
— O cheiro da feijoada está chegando aqui! Parece boa.
O comentário de Gabriela tirou Antônio do transe de tensão, obrigando-o a olhar para ela e a responder com um sorriso forçado.
Entraram, serviram-se, pesaram os pratos e sentaram-se próximos a uma janela.
— Você parece tenso. O que houve?
— Nada demais, percebi que alguns experimentos não estão saindo como o esperado enquanto processava as amostras mais cedo no laboratório.
— É grave? Porque realmente te abalou!
— Muito tempo investido…
Antônio era péssimo mentiroso, mas tão acostumado à sensação de frustração com experimentos que não foi difícil dissimular, a ponto de quase convencer a si mesmo de que falava a verdade. Gabriela aceitou a explicação sem desconfiança.
Mesmo olhando a cada trinta segundos para a janela, o professor foi relaxando um pouco a cada garfada na porção de feijão preto, mas não foi preciso esperar muito para ver o carro com os dois homens estacionar nos fundos de um container próximo dali. Antônio parou de mastigar e desviou o olhar da janela. Gabriela comia sem prestar muita atenção no que estava fazendo ou no que acontecia ao seu redor. O que será que está pensando? Quem, afinal, é essa mulher na minha frente?
— Gabriela, há algum motivo específico pra você ter acreditado que estávamos sendo seguidos? Quero dizer, por que alguém nos seguiria a um hospital?
Ela parou de comer e olhou para Antônio, ofendida pelo tom acusatório da pergunta.
— Há sim! Dois estranhos estavam me encarando no hospital e logo em seguida estavam na nossa cola na estrada…
Ela continuou falando, mas Antônio já não prestava atenção, lia em seu celular uma mensagem que acabara de receber de um número desconhecido:
SE QUER HONRAR A MEMÓRIA DO SEU ORIENTADOR, DESTRUA A AMOSTRA DO TUMOR!